escrevendo uma nova forma de pensar
descricao

O SER HUMANO NU NOS CONTOS DE MARCIO SALES SARAIVA
por Luiz Otávio Oliani

'Vamos de trem que é mais rápido"
Marcio Sales Saraiva

"Engenho de Dentro e outros contos de aprendiz", de Marcio Sales Saraiva (Edições Mundo Contemporâneo, 2019) traz o universo particular de um bairro importante do subúrbio do Rio de Janeiro, onde nasceu e vive o autor, entretanto, com muita mestria, nem todos os contos se passam neste microcosmos. Afirma-se, no entanto, que todos foram escritos neste bairro, mas lograram alcançar a universalidade dos textos, a suplantar qualquer delimitação geográfica.

Ao retornar a um tempo histórico pretérito, quando a novela da moda era "Selva de Pedra", de Janete Clair, em 1972, o conto "O menino que veio de Marte", p.13, relata o drama de uma mulher grávida, em trabalho de parto até o nascimento do filho. A ambiência se dá no conjunto habitacional denominado de BNH, no bairro de Quintino, auge da ditadura militar no Brasil. Trata-se de um texto-homenagem à mãe do autor.

"Clarice", p.50, surpreende não pela temática homoafetiva entre duas mulheres, mas sim pelo absurdo, pela irrealidade, quando, ao final do conto, Elvira devora Clarice, num gesto de estranha “antropofagia” afogando, por ciúmes, Clarice no próprio estômago. A inspiração é nítida. Clarice Lispector em “A paixão de G.H.” e Kafka de “A metamorfose”.

Em "A menina, o menino e o monstro", p.92, o leitor se assusta com um parricídio, que destrói uma família, com linguagem seca e cruel. Uma releitura ficcional do polêmico Caso Richthofen.

"Thanatos" é o deus da morte e o nome de um conto, p. 15, de narrador virulento, que não consegue abandonar o cigarro. E entre a leitura de "Sobre a brevidade da vida"' de Sêneca, o narrador descobre que as propagandas dos maços de cigarro são tão tenebrosas quanto o

"(...) açúcar, carne vermelha, exploração da mão de obra, frituras, ausência da saúde pública, comida industrializada, falta de educação ( e de dinheiro!), poluição das águas, mudanças climáticas, bebidas alcóolicas, direita cristã, agronegócio (...)”

Em "Face to face", p. 17, no Recife, Mirela viveu a desastrosa experiência de encontrar um homem por quem se interessara nas redes sociais. Daí, a crítica de Marcio, já que a personagem se viu diante de alguém totalmente diferente da realidade, um "fake-homem” que é um alerta para todas as pessoas que se deixam tomar por “amores virtuais”.

"Trair para ser", p.20,traz Claudineia, esposa fiel e submissa aos desmandos e grosserias de Silas. O texto é contundente e mostra como as mulheres são capazes de reagir ao machismo.

E, como toda boa literatura provoca estranhamento, Marcio Sales Saraiva não foge à lista de quem sabe escrever bem, sendo capaz de deixar o leitor estático. Numa releitura de "Édipo Rei", de Sofócles, o conto "Desparir", p.25 impressiona pelo título com a criação linguística de uma derivação prefixal. Mas isto é o de menos. O conteúdo atualiza o drama de Édipo, homem sobre o qual recaíam todas as agruras de ser marido, pai e trabalhador no século XXI. O fantasma do desemprego, filhos adolescentes difíceis e tumultuada relação com a companheira o levam a um incesto surpreendente.

Há algo de Clarice Lispector no conto "Samsara", p.29. Isto porque o narrador partiu de um episódio no ônibus para reflexões filosófico-existenciais. Após um menino vomitar no coletivo, emprestando o local, o narrador se deu conta de sua própria dificuldade, como na passagem:

"Queria eu poder vomitar tanta coisa. Desde a falsa felicidade dos livros de autoajuda até a hipocrisia dos defensores da velha moral social, passando pelas minhas oscilações de humor, a falta de grana, a paixão pela literatura e sua inutilidade, minha cafonice de querer ser comunista numa época em que a maioria está empreendendo e se empoderando - duas expressões detestáveis. Vomitar as dores de ser e viver, vomitar o asco do mundo."

Se em "Eros", p.35, é o conto em que o protagonista se vê em um dilema: "Qual Deus servir? Eros ou Thanatos?"; em "A pílula da fé", p.37, Dona Ofélia tomou a medicação prescrita pelo psicanalista, a fim de evitar a síndrome do pânico, ao mesmo tempo, buscou também cura numa sessão espírita. O que de fato trouxe a cura e o bem-estar? Com a palavra, o leitor.

O premiado conto "Lacan e a travesti da Lapa", p.50, traduz o drama individual de Pedro, engenheiro, lutador jiu-jitsu, dividindo apartamento com a namorada, mas que se entrega a um amor secreto. O autor mergulhou nas entranhas da sociedade, mostrando a hipocrisia social.

A genialidade dos textos de Marcio Sales Saraiva está, para princípio de conversa, na laboriosa escolha dos títulos dos contos. "A Graça do Perdão", assim grafados, com dois substantivos com letras maiúsculas, brincando com a ambiguidade já no título. A leitura mostra o drama de Amanda, ex-evangélica, que se decepcionou com a Graça, estando solitária na noite de Natal, entulhada de mensagens hipócritas e felicitações pelas redes sociais, ora enviadas por "amigos" que não eram amigos de verdade. Ao final, a personagem alcança a redenção com Hugo, que a salva da mediocridade das frias relações pelo e-mail e Facebook.

A crítica social, a ironia e o deboche estão em "O pirarucu contra o velho batuta", p. 61, conto que se passa em 2041, em cenário futurista. Por outro lado, um homem se desconcentra do culto, ao lado da cruzada de pernas de uma mulher com as unhas bem cuidadas no conto "A maçã envenenada dos seus pés", p.66.
A intertextualidade é um recurso recorrente na obra do autor. Inspirado no ícone Lima Barreto, narra "A queda de Bruzundangas",p.79 enquanto no conto "O amor virou pó",p.95, há uma releitura surreal de "Romeu e Julieta” de William Shakespeare. O fim da modernidade e do romantismo?

Há outros contos, mas fico nesses que mais me chamaram atenção.

Em suma, Marcio Sales Saraiva mergulha no inconsciente dos personagens, investigando-lhes a Psiquê . É um escritor que cose para dentro dos seres humanos a fim de conhecê-los na inteireza individual de cada um.

***********************

LUIZ OTÁVIO OLIANI é professor e escritor. Em 2017, a convite de Mariza Sorriso, representou o Brasil no IV EPLP, Lisboa. Participa de mais de 200 livros coletivos. Consta em mais de 600 jornais, revistas e alternativos. Recebeu mais de 100 prêmios. Teve textos traduzidos para inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, holandês e chinês. Publicou 14 livros: 10 de poemas, 3 peças de teatro e o livro de contos “A vida sem disfarces”, Prêmio Nelson Rodrigues, UBE/RJ, 2019. Recebeu o título de “Melhor Autor Apperjiano 2019” pelo conjunto da obra.

Fonte: https://medium.com/@marciosalessaraiva/o-ser-humano-nu-nos-contos-de-marcio-sales-saraiva-cc874e3fe74b acesso em 10/03/2020

Click e conheça o livro: